“Sanear” é uma palavra que vem do latim e significa tornar saudável, higienizar e limpar. O tratado de Hipócrates “Ares, Águas e Lugares” já ensinava aos médicos quanto à forte relação entre o ambiente e a saúde.
Atualmente, vivemos sob uma epidemia onde a principal recomendação é lavar as mãos. Entretanto, dos nossos 210 milhões de habitantes, temos 39 milhões sem abastecimento de agua potável (equivalente à soma da população do RS, SC, PR, MT, MS, RO e TO) e 101 milhões sem acesso a serviço de esgoto (equivalente à soma da população SP, MG, RJ, BA).
O novo marco legal do saneamento (PL 4.162/2019), que está nas mãos do Presidente da Republica para sanção, é uma iniciativa que promete resolver esse déficit de infraestrutura e serviços.
A Constituição de 88 definiu o saneamento como direito do cidadão e atribuiu aos municípios a responsabilidade da titularidade, fiscalização e regulação dos serviços de saneamento básico. Esses poderiam prestar o serviço diretamente ou delegar para companhias de saneamento básico estaduais ou privadas, como tem funcionado até hoje. Nada disso muda com a nova legislação. Os contratos vigentes poderão até ser prorrogados por mais 30 anos.
Entretanto, duas mudanças fundamentais estão estabelecidas: o fim do direito de preferência das empresas pública na contratação dos serviços e o condicionamento desses contratos a metas de universalização dos serviços. Essa universalização prevê até 31 de dezembro de 2033 o atendimento de 99% da população com acesso a água potável e 90% com acesso a coleta e tratamento de esgoto.
Essas medidas vêm acompanhada da expectativa de atração de investimentos de R$ 700 bilhões em 12 anos, aplicados nesse setor estratégico para a geração de empregos, ajudando a enfrentar a falta de recursos públicos para investimentos e melhorias na eficiência no setor.
A menos de reparos que se possa fazer aqui é ali, o projeto merecia a aprovação pelo Congresso Nacional. Ficaram contra apenas alguns poucos setores mais ideológicos de esquerda que ainda confundem o estatal com o público, e por miopia enxergam nessas medidas uma terrível “privatização da água”, que não existe. Outros ainda se opuseram, por considerar o lucro nessa área, como imoral, regredindo a uma discussão que Marx, a seu tempo, já havia encerrado. O lucro não é moral, tampouco imoral, é amoral. É conceito de outro plano, alheio à economia real e à política pública.
Não há aqui uma comparação entre as virtudes do sistema público ou do privado. Existem empresas públicas, como a SABESP de São Paulo, que são exemplares, prestam bons serviços e apresentam lucros, inclusive mantêm capital aberto nas bolsas. Essas poderão até concorrer em novas licitações, mas não é o caso geral. A população não pode pagar pela ineficiência na prestação de serviços, seja por entes públicos ou privados. O líder chinês Deng Xiao Ping, ao seu tempo, já ensinava “não importa a cor do gato, contanto que ele cace o rato”. Na União Soviética, quando Gorbatchov descobriu isso, já era tarde.
Não é adequado, também, ficar imaginando que basta a segurança jurídica trazida pela nova legislação de Saneamento. Não se pode acreditar na bala de prata. A decisão de investir ainda vai depender da confiança política, que no momento atual tem afastado os investimentos privados. Ademais, os resultados só serão seguros com regulação transparente, responsável e autônoma tanto em relação ao Estado quanto aos interesses do mercado.
Há quase 100 anos existem estatais no ramo e temos grande parte da população sem esgoto e sem agua. O novo marco abre uma alternativa que deve ser saudada pela possibilidade de mobilização de recursos que as estatais não possuem. É irresponsabilidade social continuar esperando mais 100 anos. O novo marco legal do saneamento é uma oportunidade para entrarmos no século XXI.
FAUSTO MATTO GROSSO
Engenheiro civil e professor aposentado da UFMS