CapitalColunasGeralInteriorJustiçaOpiniãoPolítica

CPI das Bets: Virgínia Fonseca, Congresso, o que se viu é só a superfície

Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

A CPI das Bets, realizada em 13 de maio de 2025, trouxe ao centro do debate público a influenciadora Virgínia Fonseca, convocada para esclarecer sua atuação na promoção de casas de apostas online. Sob a relatoria da senadora Soraya Thronicke, a sessão escancarou as tensões entre a política institucional e a cultura digital, revelando os desafios de conduzir uma investigação parlamentar em um ambiente dominado por narrativas midiáticas e carisma pessoal.

Este artigo não tem como objetivo julgar a influenciadora Virgínia Fonseca nem a senadora Soraya Thronicke enquanto pessoas, tampouco emitir sentenças morais sobre quem está “certa” ou “errada”. Também não pretende tomar partido ou defender qualquer dos lados envolvidos nas investigações da CPI das Bets, muito menos opinar sobre a existência ou não de eventuais crimes. O foco da análise é estratégico, simbólico e comunicacional, voltado a entender como cada personagem se comportou dentro de um cenário público e político altamente exposto. O que se busca aqui é decodificar os movimentos, falas e impactos dentro do jogo de poder contemporâneo, onde narrativas, linguagem e imagem valem tanto quanto argumentos e instituições.

Política Tradicional vs Influência Digital

Este não foi apenas um “confronto” entre senadora e influenciadora. Representou um choque simbólico: de um lado, a política tradicional, baseada em ritos, formalidades e autoridade institucional e de outro lado, a lógica da influência digital, emocional, íntima e avessa ao confronto direto.

Virgínia Fonseca não era apenas uma convocada para dar seu depoimento: encarnava um novo tipo de poder que não se sustenta em cargos ou instituições, mas na identificação direta com milhões de seguidores. Sua força vem da conexão, não da hierarquia.

No ambiente político, o like não é mais importante que o voto, e nunca será. Mas ele também não é irrelevante. O problema é que, cada vez mais, políticos estão confundindo popularidade digital com legitimidade eleitoral. Estão gastando energia tentando viralizar para públicos que, provavelmente, nunca votarão neles.

A Estratégia de Soraya Thronicke: Técnica vs Emoção

Soraya Thronicke entrou na sessão com um objetivo claro: colocar os influenciadores digitais no centro do debate sobre os impactos sociais das apostas online. Sua estratégia se apoiou em três pilares:

1. Questionamento Ético: Inspirada no método socrático, a senadora lançou perguntas como: “Por que promover apostas se você não precisa do dinheiro?”. A ideia era expor um dilema moral diante do público jovem e vulnerável que acompanha Virgínia. No entanto, esse tipo de pergunta é uma faca de dois gumes, poderia ser facilmente devolvida com: “E por que um senador precisa de R$ XXX mensais para exercer seu mandato?” ou “Por que um empresário continua trabalhando e investindo se ele já tem o suficiente para garantir a aposentadoria até dos netos?”.

2. Exposição de Contradições: Ao abordar a chamada “cláusula da desgraça” (modelo de lucro atrelado à perda dos apostadores) e exigir a apresentação de contratos, Soraya buscou fundamentos que justificassem uma regulamentação mais rigorosa do setor.

3. Fortalecimento da CPI: Em meio a críticas de que a comissão virou um “circo midiático”, a relatora tentou assumir o papel de voz da razão. Seu tom técnico e incisivo contrastava com a tietagem de outros parlamentares, uma tentativa de resgatar a credibilidade da CPI.

Apesar da intenção clara, Soraya esbarrou em obstáculos. A própria condução da CPI foi desorganizada: senadores pedindo selfies, o presidente da comissão, Hiran Gonçalves, posando para fotos com a convocada, e um ambiente que mais parecia um evento de celebridade do que uma investigação. Sem acesso a provas contundentes e limitada pelo habeas corpus preventivo de Virgínia, Soraya ficou sem munição. Sua estratégia técnica colidiu com uma muralha de blindagem simbólica, emocional e conectada ao público.

Também é válido questionar: teriam os senadores adotado a mesma postura com outros depoentes? Ou manterão a postura com os próximos? Ou a presença de uma influenciadora com 53 milhões de seguidores, e um alcance maior que a maioria dos parlamentares, influenciou? Será o receio do poder da influência? Será a aproximação do próximo pleito eleitoral?

Virgínia Fonseca: O Triunfo da Narrativa e do Carisma

Virgínia Fonseca demonstrou habilidade e estratégica ao se mover em um ambiente adverso. Vamos começar por sua imagem: moletom com a foto da filha (adorada por muitos seguidores), maquiagem leve, levando o próprio copo rosa, óculos de grau, cabelo liso sem grandes produções, muito diferente da imagem da mulher empoderada, de sucesso e com uma legião de fãs que na maioria das vezes é transmitida na mídia. Mas o mais importante, é uma imagem que seu público está acostumado a vê-la nas redes sociais, ou seja, esta era a imagem da Virgínia no dia-a-dia. Valorizando a família, ela transmitia uma mensagem clara: “Não sou uma ameaça”. Visualmente, optou por um tom quase infantilizado, reforçando a ideia de alguém que não compreende bem o que está sendo “acusada” de fazer parte.

Seus principais movimentos foram:

1. Neutralização de Acusações: Negou com veemência qualquer ganho baseado em perdas de apostadores. Apontou que o contrato com a Esportes da Sorte era “padrão”, com bônus por metas corporativas, e recusou-se a revelar cachês, amparada legalmente, mas aceitou enviar os contratos com as empresas de apostas.

2. Deslocamento de Responsabilidade: Ao perguntar a Soraya “Se faz tanto mal, por que regulamentar? Proíbe tudo”, inverteu a lógica do confronto. Posicionou-se como cidadã cumpridora das regras, colocando o ônus da moralidade sobre o próprio Legislativo.

3. Inversão de Autoridade: Ao afirmar que “não tem poder (legal) nenhum” e direcionar à senadora a responsabilidade por “fazer alguma coisa”, Virgínia adota uma tática clássica deslocando a percepção de poder. Embora tenha mais de 53 milhões de seguidores e influência, ela se apresenta como alguém sem poder institucional, quase impotente. A frase inverte simbolicamente o eixo de autoridade: o poder político (legal) da senadora seria a única que realmente conta, enquanto o dela (comunicacional e cultural) seria irrelevante.

4. Capitalização da Visibilidade: Pouco depois da audiência, Virgínia anunciou uma promoção de sua grife com 71% de desconto. A tietagem de senadores e a ausência de enfrentamento real transformaram a CPI em palco para autopromoção.

“Mas eu acho que eles pedem socorro para a senhora, porque a senhora tem o poder de fazer alguma coisa, eu não tenho poder de fazer nada” – Virgínia Fonseca. Esse movimento foi eficaz para desarmar confrontos e blindar sua imagem pública. Coloca a parlamentar na posição de responsável por tudo e reforça a ideia de que a influenciadora apenas “cumpre o que está na lei”, evitando o debate sobre sua responsabilidade ética e social como promotora de práticas potencialmente nocivas.

Apesar das críticas de alguns analistas, que apontam um tom debochado e infantilizado, sua base de fãs permaneceu firme. Para eles, Virgínia foi autêntica, e autenticidade é moeda valiosa no mercado da influência.

A Linguagem que (Des)conecta

A CPI expôs um abismo entre linguagens. Soraya falava com racionalidade jurídica e institucionalidade, e é isso que se espera de uma senadora que está a frente de uma CPI. Virgínia operava no campo simbólico, emocional, imagético. Enquanto a senadora buscava coerência lógica, a influenciadora entregava conexão espontânea.

Um exemplo simbólico teve senador, que elogiou publicamente o pré-treino vendido por Virgínia e apelou para que ela deixasse os jogos e focasse nos “maravilhosos produtos” de sua marca. Virgínia agradeceu… nos stories.

Emoção, Razão e Ritmo

Soraya Thronicke não falhou por despreparo técnico, mas falhou por não compreender a natureza simbólica do embate em que estava inserida. Em um cenário onde comunicação é poder, sua fluência foi comprometida por frases inacabadas, retomadas apressadas, quebras de raciocínio e um discurso excessivamente justificador a colocaram em uma posição de insegurança diante do público. Ela sabia o que dizer, mas não soube como dizer diante de uma adversária, de certa forma, blindada pelo carisma e pela simplicidade, talvez, “encenada”.

Soraya apresentou domínio técnico e jurídico, citou leis, contextualizou o papel da CPI e formulou boas perguntas, mas sua cadência discursiva deixou a desejar quando confrontada pela postura vitimista e calculadamente informal da influenciadora. A parlamentar tentou manter o controle com racionalidade, mas em vários momentos derivou para a frustração.

Além disso, suas respostas longas, defensivas e carregadas de justificativas institucionais apontam para insegurança: a tentativa de reafirmar publicamente o valor da política diante de uma audiência que, em grande parte, estava mais conectada com a linguagem de Virgínia do que com o tom formal da senadora. No lugar de exercer autoridade com naturalidade, tentou explicá-la e quem precisa explicar sua autoridade já está, de certo modo, perdendo o debate.

A CPI como Palco: Quem foi exposto de verdade?

A presença de Virgínia Fonseca fortaleceu ou enfraqueceu a CPI das Bets? Sua convocação foi feita com o propósito de responsabilizar influenciadores pelo papel que desempenham na promoção de casas de apostas. Mas, politicamente, o efeito foi o oposto: transformou a CPI em palco midiático e o Congresso, em coadjuvante.

Quem convocou Virgínia? Parlamentares. Quem deu visibilidade nacional ao seu nome, à sua marca, à sua voz? O próprio Parlamento. E quem se perdeu no meio do caminho? A institucionalidade.

A imagem de senadores tirando selfies com a convocada, posando para fotos, a quebra de decoro simbólico, tudo isso rebaixou o tom institucional e enfraqueceu a própria credibilidade da comissão. Mesmo as falas mais sérias e embasadas foram ofuscadas por um ambiente que parecia mais preocupado com a repercussão nas redes do que com o avanço das investigações. O Senado, uma das casas legislativas mais importantes do país, se viu exposto, não por ela, mas por si mesmo.

A sessão expôs mais do que um “confronto” entre uma parlamentar e uma influenciadora, escancarou o despreparo simbólico do Congresso Nacional diante do novo ecossistema de poder. O Senado, casa que deveria representar ponderação, técnica e autoridade, foi engolido por uma lógica de espetáculo que ele próprio ajudou a montar.

O que deveria ser uma CPI com foco técnico e político se transformou em um episódio de autofragilização institucional. E isso não é responsabilidade da convocada. É responsabilidade de quem criou o palco e esqueceu que, em 2025, o domínio da cena importa tanto quanto o conteúdo da pauta.

Lições para o Contexto Político

Tudo comunica, e tudo é política

Cada gesto, cada silêncio, cada enquadramento de câmera, principalmente em uma CPI comunica algo. A política não se resume aos discursos oficiais: ela se expressa também nos bastidores, nas pausas, nas selfies, nas omissões e até nas roupas escolhidas. Quando os próprios parlamentares não percebem o que estão comunicando, cedem o controle narrativo para quem entende mais do palco do que do plenário.

CPIs são instrumentos poderosos do Parlamento, mas precisam ser levadas a sério

O objetivo de uma CPI é apurar, investigar, esclarecer e propor caminhos. O depoimento de Virgínia Fonseca deveria ter revelado informações concretas: contratos, possíveis práticas de indução ao consumo, mecanismos de monetização de apostas, reflexões “éticas”. Em vez disso, a sessão serviu mais para promover imagem do que para produzir evidência, esvaziando a finalidade do instrumento.

Percepção molda a realidade

Não basta estar com a razão se a imagem transmitida é de fragilidade. A performance política conta e muito. Aos olhos do público, a CPI pareceu perder força, foco e relevância institucional diante da serenidade calculada da depoente. Quando a percepção é de desorganização e informalidade, a realidade política perde potência.

A disputa simbólica entre política e cultura digital está em curso e a política está perdendo

A influência hoje não depende de mandato, mas de audiência. A política tradicional ainda tenta operar sob códigos que não dialogam com a linguagem da conexão digital. A CPI mostrou isso: quem domina afeto, timing e narrativa leva vantagem até mesmo em ambientes formais como o Senado.

O Congresso subestimou o palco que montou

Ao convocar uma influenciadora, talvez o que faltou foi uma melhor estratégia e preparo, sem preparação simbólica e em um ambiente desorganizado, o Parlamento permitiu que o jogo escapasse das mãos. O palco era institucional, mas a cena foi dominada pela lógica da visibilidade, da leveza e do espetáculo. Quem criou a arena foi o Congresso, quem comandou o show, foi a convidada.

Reflexão Final

A sessão da CPI das Bets que levou Virgínia Fonseca ao Senado deveria ser um momento de apuração, aprofundamento e enfrentamento de uma pauta urgente: o impacto social das apostas online no Brasil. Mas o que se viu foi um retrato, quase didático, do descompasso entre forma e função, entre rito e realidade. A política, travada em seus códigos tradicionais, encontrou dificuldade em se impor diante de uma figura que domina a linguagem da era digital, da conexão emocional e da influência simbólica.

Este artigo, vale reforçar, também não tem como objetivo avaliar se a CPI está certa ou errada em seu propósito regulatório. Não se pretende aqui julgar se o caminho é proibir, restringir ou regulamentar. A questão das apostas é complexa, envolve liberdade individual, responsabilidade social, e um contexto onde o próprio Estado lucra com a legalização. Há quem se endivide, há quem destrua a própria vida. Mas também existem outros vícios, outras compulsões, outras práticas tão destrutivas quanto. Vamos proibir todas? Onde termina a liberdade e começa o controle?

Os números são relevantes: segundo o Banco Central, os brasileiros apostam quase R$ 30 bilhões por mês em casas de apostas online, e 5 milhões dos apostadores são beneficiários do Bolsa Família, que juntos movimentaram R$ 3 bilhões em plataformas digitais. Esses dados exigem análise séria, política pública e responsabilidade legislativa.

Não se trata de reduzir o episódio a um embate entre Soraya e Virgínia, nem de exaltá-lo como símbolo de vitória de um lado sobre o outro. Trata-se de compreender que, naquele palco, o que esteve em jogo foi a própria capacidade das instituições de lidarem com uma nova lógica de poder. A CPI falhou não apenas por desorganização, mas por não entender o tipo de disputa que estava em curso. E quando o Parlamento perde o domínio da narrativa, perde também parte de sua autoridade.

Deixar um comentário