Relatório da organização foi divulgado nesta segunda-feira
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado nesta segunda-feira (28), que analisou a justiça racial após o assassinato do norte-americano George Floyd em 2020, apela a todas as nações para que ponham fim à “impunidade” das forças de segurança que violam os direitos humanos dos negros. A chefe dos Direitos Humanos da ONU pede, no documento, que todo o mundo colabore para ajudar a acabar com a discriminação, a violência e o racismo sistêmico contra os afrodescendentes e que façam “as pazes”.
Desenvolvido após o assassinato de George Floyd por um policial norte-americano em Minneapolis, em maio de 2020, o relatório da ONU diz que a discriminação racial e o uso de força excessiva pela polícia estão enraizados nos Estados Unidos (EUA), na Europa e na América Latina. Michelle Bachelet, a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, mostra, com o documento, uma visão mais abrangente dos maus-tratos enfrentados pelos negros ao longo de séculos, principalmente por causa do comércio transatlântico de escravos, e pede uma abordagem “transformadora” para os dias de hoje.
A agência da ONU analisou 190 assassinatos de africanos e afrodescendentes por agentes de autoridade em todo o mundo e concluiu que os policiais “raramente são responsabilizados” por matar pessoas de origem africana, principalmente devido a investigações “deficientes” e à falta de vontade de reconhecer o impacto do racismo estrutural.
Para Bachelet, o racismo estrutural cria barreiras ao acesso das minorias a empregos, à saúde, à habitação, à educação e até à Justiça.
“Estou pedindo a todos os Estados que parem de negar e comecem a desmantelar o racismo, para acabar com a impunidade e construir confiança, para ouvir as vozes dos afrodescendentes e para confrontar legados do passado e compensá-los”, escreveu a alta comissária no relatório.
Essas compensações, acrescentou, “não devem ser apenas equiparadas a indenizações financeiras”, mas devem incluir a restituição, a reabilitação, o reconhecimento de injustiças, os pedidos de desculpas, a memorialização, as reformas educacionais e “garantias” de que tais práticas não se repetirão.
Além do caso polémico de Floyd, são citados mais seis casos no relatório, como o de Kevin Clarke que morreu após ser detido por policiais em Londres, em 2018. À época, o juiz considerou que Clarke, que já em 2002 tinha sido diagnosticado com esquizofrenia paranoica, concluiu que o uso inadequado de forças pela polícia levou à sua morte.
Os casos restantes citados incluem um adolescente afro-brasileiro, de 14 anos, morto a tiros numa operação policial antidrogas em São Paulo, em maio de 2020, e um francês de origem maliana, de 24 anos, que morreu sob custódia policial em julho de 2016.
Racismo e discriminação
A agência da ONU para os Direitos Humanos foi incumbida, em junho de 2020, de redigir um relatório aprofundado sobre o racismo sistêmico contra africanos e afrodescendentes. Aproveitando a análise intensa sobre racismo em todo o mundo e o impacto nos afrodescendentes, como nos casos de assassinatos de negros desarmados nos Estados Unidos, o relatório analisou violações dos direitos humanos, respostas dos governos a protestos pacíficos antirracismo e responsabilização e compensação das vítimas.
“Há hoje uma oportunidade importante para alcançar um ponto de inflexão para a igualdade racial e a justiça”, diz o relatório, que apela aos países para que acelerem ações a fim de acabar com a injustiça racial, a pôr fim à impunidade nas violações de direitos pela polícia, a garantir que os afrodescendentes e aqueles que falam contra o racismo sejam ouvidos e que os “erros do passado” sejam enfrentados por meio de responsabilização e compensação.
“O racismo e a discriminação racial contra africanos e afrodescendentes estão frequentemente enraizados em políticas e práticas baseadas na degradação do status dos indivíduos na sociedade”, acrescenta o relatório.
Segundo a investigação, que vem sendo feita desde o ano passado, o problema prevalece mais em países com legado de escravatura, de comércio transatlântico de africanos escravizados ou de colonialismo, o que resultou na fixação de grandes comunidades de descendentes de africanos.
“O racismo sistêmico precisa de resposta sistêmica. É preciso haver uma abordagem abrangente, em vez de fragmentada, para desmantelar sistemas enraizados durante séculos de discriminação e violência. Precisamos de uma abordagem transformadora que aborde as áreas interconectadas que impulsionam o racismo e levam a tragédias constantes, totalmente evitáveis, como a morte de George Floyd”, argumentou Michelle Bachelet.
Famílias “traídas”
Durante a análise dos casos de mortes sob custódia policial em diferentes países, o relatório identificou “semelhanças impressionantes” e padrões – incluindo os obstáculos que as famílias enfrentam para ter acesso à Justiça. O relatório observa que os dados disponíveis mostram “um quadro alarmante de impactos desproporcionais e discriminatórios em todo o sistema sobre os afrodescendentes quando abordados pelas autoridades policiais e com o sistema de Justiça criminal em alguns Estados”.
Muitas famílias “sentiram-se continuamente traídas pelo sistema”, citam “uma profunda falta de confiança” e, “muitas vezes, recai sobre as vítimas e os familiares lutar pela responsabilização sem o apoio adequado”.
“Várias famílias me descreveram a agonia que enfrentaram ao lutar pela verdade, a Justiça e a compensação, e a angustiante presunção de que os seus entes queridos de alguma forma ‘mereciam'”, disse Bachelet. “É desanimador que o sistema não esteja preparado para os apoiar. Isso tem de mudar”.
Investigações, processos, julgamentos e decisões judiciais muitas vezes deixam de considerar o papel que a discriminação racial, os estereótipos e o preconceito institucional podem ter nas mortes sob custódia, acrescenta o relatório.
Com a investigação, o objetivo do relatório é transformar essas abordagens numa resposta mais sistêmica por parte dos governos para lidar com o racismo, e não apenas nos Estados Unidos. Casos semelhantes são denunciados também em cerca de 60 países, incluindo a Bélgica, o Brasil, Reino Unido, Canadá, a Colômbia e França, entre outros.
“Não conseguimos encontrar um único exemplo de um Estado que tenha considerado totalmente o passado ou explicado de forma abrangente os impactos na vida dos afrodescendentes hoje”, escreveu Mona Rishmawi, que lidera uma unidade contra a discriminação na ONU. “A nossa mensagem, portanto, é que essa situação é insustentável”.